Fachada da antiga casa noturna, onde um incêndio matou 242 pessoas e feriu outras 636 em 2013; ninguém foi responsabilizado na Justiça até hoje
Um dos porta-retratos que Maria Aparecida Neves, 64, exibe do filho em uma escrivaninha é da noite da tragédia. Augusto Cesar Neves, 19, veste uma camisa listrada em azul, preto e branco. Sorri ao lado de duas adolescentes e do amigo Luiz Eduardo Viegas Flores, 24, na saída de um churrasco.
A possível esticada até a boate Kiss, conta Cida, era incerta até minutos antes. Decidiram bancar os anfitriões para as duas jovens, forasteiras em Santa Maria (RS).
“Quando eram umas 22h30, ele entrou em casa. Pensei: ‘Ai, graças a Deus. Ele não vai.’ Mas ele passou em casa só para trocar de camisa e se despediu”, recorda.
O incêndio da boate Kiss, que completa dez anos na próxima sexta-feira (27), comoveu o Brasil por materializar o maior temor de Cida e de muitos pais: os filhos saírem e jamais voltarem.
Naquela noite, a lotação da boate fez a dupla de amigas ir embora mais cedo. Após o incêndio, Luiz Eduardo e Augusto estiveram entre os 242 jovens que não voltaram.
A idade média das vítimas do incêndio foi de apenas 23 anos. A maioria sofreu asfixia devido a gases tóxicos liberados pela queima do revestimento de espuma instalado irregularmente no local e que foi atingido pelas chamas de um artefato acendido durante o show da banda Gurizada Fandangueira. Houve ainda 636 feridos.
Todavia, ao longo da última década, familiares, sobreviventes e amigos das vítimas reclamam de que a imensa e imediata empatia na cidade universitária se transformou.
Hoje, eles lutam para preservar a memória da tragédia dentro e fora dos lares e enfrentam conterrâneos cada vez mais agressivos, que defendem que se encerre o capítulo Kiss na história do município gaúcho de 285 mil habitantes –mesmo não havendo nem sequer uma pessoa responsabilizada pela Justiça.
O júri popular que condenou dois empresários, um músico e um assistente de palco a penas entre 18 e 22 anos de prisão foi anulado sete meses depois por dois desembargadores por erros processuais. O Ministério Público recorre da anulação no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, mas não há prazo para uma decisão ou para novo julgamento.
Até a morte de Augusto, logo após a aprovação no vestibular em ciência da computação, Cida exibia em porta-retrato apenas uma foto do filho, ainda bebê. Hoje, são 15 espalhadas pela casa de madeira na Vila São João Batista, um banner que ela leva para as manifestações e uma no pingente do colar. Outras tantas estão impressas para serem folheadas longamente, vez por outra, no quarto vazio.
“Com a minha idade, tenho medo de ir esquecendo de como ele era. Tem quem diga que esse monte de foto é pior. Para mim, não é. Gosto de imaginar como ele estaria hoje. De assistir a uma reportagem na TV sobre tecnologia e saber que ele estaria trabalhando com isso hoje”, afirma Cida.
Sentimentos como o dela tornam compreensíveis iniciativas como a exposição “Tempo Perdido”, mobilizada por um coletivo de amigos das vítimas –chamado Kiss: Que não se repita– que arrecadou recursos e contratou um designer gráfico para simular em fotografia como estariam atualmente oito vítimas.
Em 27 de janeiro, às 19h, as fotografias serão exibidas na praça Saldanha Marinho, como parte da programação de eventos dos dez anos da tragédia. Entre 25 e 28 de janeiro, a cidade terá ainda ações como vigília, missa, palestras e a exibição pública do primeiro capítulo do documentário “Boate Kiss - A Tragédia de Santa Maria”, que estreia no dia 26 na Globoplay.
“Eu percebo caras feias quando vou trabalhar com camisetas como essa [alusiva aos sete anos do incêndio]. Muitas pessoas simplesmente não querem ser lembradas da Kiss, mesmo que não haja nada impedindo que algo assim aconteça novamente”, diz Sindi Caroline Chaves, 28 anos, integrante do coletivo.
Há quatro meses, passada a fase crítica da pandemia de Covid, a AVTSM (Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria) retomou as vigílias em uma tenda no centro de Santa Maria. Os familiares realizam um ato mensalmente, sempre no dia 27.
Recebem olhares pouco amistosos de transeuntes e críticas nas redes sociais. “‘Vocês não deixam eles descansarem’, eles nos dizem. Agora saiu o trailer da Netflix e eu tive de parar de ler os comentários” diz Marilene Santos, vice-presidente da AVTSM, em referência à minissérie “Todo Dia a Mesma Noite”, baseada no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex.
Marlene, que perdeu a filha caçula Nathiele dos Santos Soares, 21, e o genro, Alan Raí de Oliveira, 26, não vê possibilidade de descanso sem a punição dos culpados.
“Nos mandam tirar a barraca da praça, dizem que queremos dinheiro, que queremos vingança. Não queremos vingança, queremos Justiça. Para ter descanso, temos primeiro de encerrar isso [o processo]”, diz a mãe de Nathiele.
Ao longo desses dez anos, Marilene tem cada vez mais dificuldade de encontrar solidariedade até de familiares próximos, que insistem que “nada vai fazer eles voltarem”.
Outra unanimidade entre os familiares é o cansaço, acentuado com o avanço da idade dos pais —seis deles já faleceram desde 2013— e pela frustração com a anulação do julgamento, em agosto passado. Algo que o sobrevivente e testemunha no júri popular, Maike Adriel dos Santos, 30, classifica como “tortura psicológica”.
“Os únicos punidos até aqui pela tragédia somos nós. Somos e continuamos a ser punidos. Mas vou procurar forças para testemunhar outras dez vezes se for preciso”, diz o jovem que perdeu sete amigos na primeira e única vez que entrou na Kiss.
Após oito anos praticamente sem falar sobre a tragédia, o psicólogo Gabriel Rovadoschi Barros, 28, assumiu a presidência da AVTSM.
“Tive diferentes fases nesses dez anos. Era a primeira vez que eu entrava em uma boate, e muito da minha juventude eu perdi ali. Coisas que eu deveria viver nos meus 20 e poucos anos acabaram se deslocando. Eu vinha amadurecendo esse assunto dentro de mim para enfim conseguir olhar nos olhos dele”, conta Gabriel.
Ele se diz inconformado com o andamento do processo, mas pretende priorizar dois outros pontos à frente da associação: cuidar uns dos outros e batalhar por espaços seguros para se falar sobre o trauma na cidade. Um deles pode vir a ser a própria Kiss.
Desapropriada em 2017 pela prefeitura, a boate teve o interior conservado para servir de prova no processo. Um projeto de memorial já foi aprovado para ser construído após a demolição, mas a hipótese de um novo julgamento trouxe mais essa incerteza.
Há familiares que defendem que a Kiss fique como está até que a Justiça seja feita, como um emblema. Já Gabriel está entre os que querem que o memorial seja construído logo e sirva para reflexão e denúncia. Para que a história da Kiss passe a ser contada às novas gerações o quanto antes, ainda que sem um ponto final.
“Os únicos punidos até aqui pela tragédia somos nós. Mas vou procurar forças para testemunhar outras dez vezes se for preciso
Maike Adriel dos Santos, 30 sobrevivente do incêndio
“Muitas pessoas simplesmente não querem ser lembradas da Kiss, mesmo que não haja nada impedindo que algo assim aconteça novamente
Sindi Caroline Chaves, 28 integrante de coletivo de amigos das vítimas.
Autor: Caue Fonseca
Fonte: pressreader.com/Folha de S.Paulo