Diante do abandono do genitor e dos obstáculos para a garantia de
direitos, muitas mulheres são submetidas às adversidades de cuidar e
sustentar suas famílias sozinhas. Para algumas dessas mães, a rede de
apoio é formada justamente por outras mulheres em situação semelhante.
No Brasil, 11 milhões de mulheres criam sozinhas os filhos, apontou pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), referente a 2022.
É
o caso de Cibele*, de 26 anos, que tem um filho de cinco anos, cujo
genitor não compartilha cuidados nem os custos básicos da criança. Ela
precisa estar presente para garantir saúde, desenvolvimento integral,
educação, bem-estar e afeto ao filho, enquanto enfrenta uma jornada de
trabalho que a deixa fora de casa 12 horas por dia.
“Acredito que os
melhores momentos que eu tenho é quando chega o final de semana e, como
eu consigo me organizar melhor, saio com ele pra passear. É um dos
momentos em que a gente consegue se distanciar um pouco da nossa rotina
da semana, que é muita correria”, relatou Cibele.
“Por mais que seja
um pouco estressante [no dia a dia], sempre tento não incluir ele nesse
estresse que eu carrego sozinha”, acrescentou.
Entre as
garantias que ela proporciona ao filho, também sozinha, está o tempo de
lazer, ainda que a rotina seja apertada, especialmente, de segunda a
sexta-feira.
“O que me deixa satisfeita é saber que através da minha organização eu consigo manter esse momento de lazer com ele”, destacou.
Acesso à justiça
O
processo na Justiça por pensão alimentícia e guarda unilateral, por
meio da Defensoria Pública do estado de São Paulo, se arrasta há três
anos - o que representa mais da metade do tempo de vida do seu filho.
Ainda que, após uma decisão judicial, o pagamento seja retroativo, na
prática, as necessidades da criança não esperam o tempo do sistema
judiciário.
“O que falta nas políticas públicas é o
reconhecimento. Essas mulheres sustentam sozinhas seus lares, educam,
trabalham, e ainda enfrentam preconceitos e violências. É preciso olhar
para elas com respeito, garantindo proteção social, dignidade e
oportunidades reais”, disse a advogada Sueli Amoedo, especialista em
políticas públicas para mulheres, em entrevista à Agência Brasil.
Segundo
ela, as mães solo enfrentam múltiplos desafios para garantir os
direitos dos filhos na Justiça e a morosidade dos processos é um dos
principais entraves.
“Demandas como pensão alimentícia, guarda e
regulamentação de visitas levam tempo para serem julgadas, e, quando
finalmente há uma decisão, os valores fixados muitas vezes são
insuficientes para cobrir sequer os custos básicos da criança”, diz.
Outro
ponto crítico é o acesso desigual à Justiça.“Em muitos municípios
brasileiros não há Defensoria Pública, e a alternativa, que seria a
assistência judiciária municipal, costuma operar em condições
precárias”, ressaltou Sueli, que ocupa a posição de Liderança Jurídica
Nacional do projeto Justiceiras, que atua de forma gratuita, no
acolhimento e orientação técnica nas áreas do Direito, Psicologia e
Assistência Social.
Em várias cidades, segundo a advogada, as
mulheres precisam acordar de madrugada para conseguir uma senha de
atendimento. Ficam horas em filas, algumas com filhos pequenos no colo, e
mesmo assim, ao chegar sua vez, as senhas já se esgotaram. “Isso
desestimula e, muitas vezes, impede que elas consigam sequer iniciar uma
ação judicial.”
Além disso, a advogada afirma que há uma profunda desinformação sobre os próprios direitos.
“Muitas
mães solo não sabem como entrar com uma ação de alimentos, que
documentos precisam ou quais benefícios têm direito. A ausência de
orientação jurídica acolhedora e acessível é mais uma barreira no
caminho da justiça”, disse.
Cibele cogitou desistir do processo
judicial por falta de perspectiva de um resultado, além do desgaste que a
situação gerava e que a levou a um quadro de sofrimento mental. A
partir do contato com o Justiceiras, ela descobriu que, no início do
processo, o juiz já poderia ter fixado um valor referente a alimentos
provisórios, em caráter liminar, até que houvesse a sentença da pensão
alimentícia. Ela soube também da possibilidade de uma medida protetiva
em episódios de violência.
Rede de apoio
Quando precisa de ajuda,
em casos como doença, demais imprevistos ou cansaço, Cibele recorre à
própria mãe, que também é chefe de família e, ao longo da vida,
enfrentou quase sozinha as tarefas e responsabilidades para criar dois
filhos. “Ontem mesmo a minha mãe levou ele ao médico. Foi muito em cima
da hora, eu não consegui avisar no trabalho”, contou.
“Quando eu
preciso resolver qualquer coisa, é a minha mãe sempre que está ali pra
me ajudar. De vez em quando, eu peço pro pai, mas sempre acabo não tendo
resultado, nem força, nem ajuda, nem nada. Acaba que ele diz ‘não
posso, não dá, por que você não avisou antes?’. Sendo que, às vezes, as
coisas acontecem assim de imprevisto, e a pessoa não se importa em
querer ajudar”, disse.
O percentual de mulheres responsáveis por
unidades domiciliares teve aumento expressivo entre 2010 e 2022, subindo
de 38,7% para 49,1%, segundo o último Censo Demográfico (2022),
divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Eram 35,6 milhões de mulheres nessa situação e 36,9 milhões de homens.
O
percentual de mulheres nessa condição supera os 50% em 10 estados:
Pernambuco (53,9%), Sergipe (53,1%), Maranhão (53%), Amapá (52,9%),
Ceará (52,6%), Rio de Janeiro (52,3%), Alagoas e Paraíba (51,7%), Bahia
(51,0%) e Piauí (50,4%). Muitas dessas mulheres são mães solo.
O
censo revelou ainda que, no mesmo período, houve crescimento do número
de famílias monoparentais, onde o responsável vive sozinho com filhos ou
enteados, que passou de 16,3% para 16,5%. Quase um em cada seis lares
brasileiros é chefiado por uma pessoa que vive sozinha com filhos
Políticas públicas
As
políticas públicas para mães solo precisam ser pensadas de forma
integrada e com base na escuta real dessas mulheres, conforme avaliação
da especialista Sueli Amoedo.
“A primeira necessidade é a
oferta de creches e escolas em tempo integral, para que elas possam
trabalhar com segurança e tranquilidade”, citou.
O cuidado com a
saúde física e mental dessas mães também é questão essencial neste
contexto, com garantia de acesso rápido a consultas, exames,
psicoterapia e medicação.
“Na esfera financeira, políticas de
transferência de renda específicas para mães solo em situação de
vulnerabilidade são urgentes”, lembrou a advogada, além de estimular a
empregabilidade.
No campo jurídico, a advogada destaca que é urgente
ampliar e qualificar o acesso à justiça. “A ausência da Defensoria
Pública em muitos municípios faz com que mulheres dependam de uma
assistência judiciária limitada, que muitas vezes é burocrática e
desumana”, lamentou. O resultado dessa realidade é que as mães acabam
desistindo de buscar o que é de direito por esgotamento físico e
emocional.